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UNIÃO - CORONAVÍRUS / DOAÇÃO DE SANGUE / NOTA TÉCNICA Nº 19

03 Abril 2020 | Tempo de leitura: 17 minutos
Diário Oficial da União

Aspectos regulatórios do uso de plasma de doador convalescente para tratamento da Covid-19.

Diploma Legal: Nota Técnica nº 19
Data de emissão: 03/04/2020
Data de publicação: 03/04/2020
Fonte: Diário Oficial da União
Órgão Emissor: ANVISA - AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA

Nota da Equipe Legnet

1. Relatório

Covid-19 é uma doença infecciosa causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), descoberto recentemente, após o surto em Wuhan, China, em dezembro de 2019. Atualmente, não existem vacinas, anticorpos monoclonais (mAbs) ou outros medicamentos específicos disponíveis, com eficácia comprovada para o SARS-CoV-2. Nesse contexto, o plasma ou o soro convalescente humano apresenta o potencial de ser uma opção para o tratamento da Covid-19, já que os anticorpos (imunoglobulinas) presentes no plasma convalescente são proteínas que poderiam ajudar a combater a infecção1,2.

O plasma convalescente é a parte líquida do sangue coletada de pacientes que se recuperaram de uma infecção e sua administração passiva é um meio que pode fornecer imunidade imediata a pessoas suscetíveis. No caso da Covid-19 trata-se de um produto que pode estar rapidamente acessível, à medida em que exista um número suficiente de pessoas que se recuperaram da doença e que possam doar o plasma contendo imunoglobulinas que reajam contra o vírus SARS-CoV-22.

A terapia passiva pela administração de anticorpos presentes no plasma convalescente tem um largo histórico de utilização2, além de ter sido testada mais recentemente na Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS 1) em 2003 e na Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS) em 2012, entre outras infecções como epidemias causadas por Influenza H1N1 e por Ebola2,3,4,5. No contexto da epidemia Covid-19, diversos estudos científicos têm surgido sobre o uso do plasma convalescente, sugerindo resultados promissores. Porém também chamam atenção para que os resultados derivam, em geral, de estudos não controlados, além disso que o tamanho limitado das amostras e o desenho dos estudos impedem a comprovação definitiva sobre a eficácia potencial desse tratamento, requerendo avaliação mais aprofundada na forma de ensaios clínicos.

A Agência Reguladora dos Estados Unidos (EUA), Food and Drug Administration - FDA, foi a primeira a publicar orientações para o uso do plasma convalescente6, enfatizando o empenho do órgão em fazer todo o possível para possibilitar respostas oportunas à pandemia de Covid-19, facilitando acesso a produtos investigacionais para pacientes graves da doença ou com risco de morte iminente. Segundo o FDA, o plasma convalescente está sendo investigado para o tratamento da Covid-19 porque não há tratamento aprovado para esta doença e há estudos que sugerem o potencial do uso deste plasma. O uso de plasma convalescente não demonstrou ser eficaz em todas as doenças estudadas e, o FDA ainda considera importante determinar a segurança e a eficácia desse procedimento, por meio de ensaios clínicos, antes da administração rotineira de plasma convalescente em pacientes com Covid-19. Dada a emergência de saúde pública que a pandemia de Covid-19 representa, em paralelo à rota convencional para autorização de estudos clínicos (Investigational New Drug Applications - INDs) com produtos biológicos, o FDA vai facilitar o uso em pacientes com situação grave ou em risco de morte iminente, por meio de pedido de autorização emergencial (Investigational New Drug Applications - eINDs), mediante solicitação de médico responsável.

O Brasil também considera os hemocomponentes7 (produtos oriundos do sangue total ou do plasma, obtidos por meio de processamento físico) como produtos biológicos que devem ter sua eficácia clínica e segurança comprovada, além da qualidade garantida pela adoção dos requerimentos de Boas Práticas no Ciclo do Sangue. Contudo, no contexto brasileiro estes produtos não são passíveis de registro sanitário8 e, portanto, nem de aprovação de protocolos de ensaio clínico pela Anvisa. Nesse sentido, em que pese a eficácia dos hemocomponentes para os fins da terapia transfusional estar bem consolidada pela literatura e pelos critérios definidos pelo Ministério da Saúde7, diante das evidências científicas limitadas, a eficácia da utilização de plasma convalescente para o tratamento da Covid-19 não está cientificamente comprovada.

O arcabouço regulatório brasileiro prevê ainda a avaliação e o reconhecimento de procedimentos terapêuticos como responsabilidade dos respectivos Conselhos profissionais (neste caso, o Conselho Federal de Medicina - CFM), mediante comprovação de sua eficácia clínica ou sua utilização em caráter experimental9.10.

2. Análise

O plasma convalescente para Covid-19 obtido a partir de um doador, sem processamento químico ou físico-químico, é considerado um hemocomponente, ou seja, um produto biológico não passível de registro, segundo a Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa RDC Nº 34, de 11 de junho de 20148: "Sangue e componentes obtidos nos serviços de hemoterapia são produtos biológicos para uso terapêutico, sob regime de vigilância sanitária, dispensados de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa". Desta forma, a Gerência de Sangue, Tecidos, Células e Órgãos - GSTCO/Anvisa entende que não há prerrogativa legal para análise e aprovação dos estudos clínicos do plasma convalescente para Covid-19 pela Anvisa.

No entanto, é papel da Anvisa alertar aos pesquisadores, profissionais médicos e aos pacientes que não existem evidências científicas conclusivas sobre a eficácia do tratamento de pacientes acometidos pela Covid-19 com o uso do plasma convalescente. Sendo assim, a Agência orienta que o plasma convalescente para Covid-19 deva ser usado em protocolos de pesquisa clínica, com os devidos cuidados e controles necessários, sem prejuízo do disposto em legislação específica, códigos de ética ou Resoluções do Conselho Federal de Medicina sobre a autoridade e conduta médica do profissional prescritor.

Ressalta-se que, por se tratarem de procedimentos experimentais, os protocolos de estudos devem seguir o disposto nas resoluções brasileiras aplicáveis à realização de pesquisa em seres humanos. Ressalta-se ainda que a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) resolveu que todos os protocolos de pesquisa referentes ao Covid-19 deverão ser encaminhados diretamente para apreciação ética pela própria CONEP, caráter emergencial11.

Os pesquisadores ou equipes médicas devem entrar em contato com os serviços de hemoterapia para formalizar possíveis parcerias para obtenção de plasma convalescente, de acordo com os protocolos de pesquisa ou protocolos clínicos em desenvolvimento, seguindo rigorosamente os critérios técnicos aplicáveis a doação, processamento, armazenamento e transfusão de sangue, executados em serviços de hemoterapia, conforme definido pela Anvisa8 e pelo Ministério da Saúde12,13, ressaltando-se aqueles destinados à seleção de doadores na triagem clínica, à triagem laboratorial, aos testes pré-transfusionais e à transfusão, incluindo o manejo de eventos adversos ao uso do sangue14.

Ressalta-se que as transfusões de plasma são geralmente seguras e bem toleradas pela maioria dos pacientes, desde que seguidos os requisitos técnicos e sanitários para produção e uso dos hemocomponentes. Ainda assim, é importante esclarecer que estes procedimentos transfusionais podem causar reações alérgicas e outros eventos adversos, sendo necessário suporte de médicos especializados, preferencialmente de hemoterapeutas ou hematologistas, às equipes envolvidas com o manejo dos pacientes, bem como treinamento das equipes para a prevenção, detecção e manejo de reações transfusionais, em especial sobrecarga circulatória associada à transfusão (TACO)15 e lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão (TRALI)16, além de outros riscos, relatados na literatura, decorrentes do uso do plasma convalescente2. Recomenda-se, portanto, que profissionais responsáveis pela assistência direta ao paciente sejam relembrados sobre a necessidade de identificar e comunicar todas as suspeitas de reações adversas à transfusão ao serviço de hemoterapia produtor do hemocomponente para auxílio na investigação e demais condutas pertinentes, e, posteriormente, realizar a notificação de eventos adversos ao Sistema Nacional de Vigilância Sanitária - SNVS, conforme regulamentação vigente8,12,13.

3. Conclusão

Considerando as recentes discussões sobre o uso do plasma convalescente para tratamento da Covid-19, à luz do arcabouço regulatório brasileiro para medicamentos, sangue e hemocomponentes, a Anvisa esclarece que:

a) Se a utilização pretendida envolver o uso experimental de um medicamento biológico derivado do plasma (hemoderivado), que se enquadre na definição da RDC 55/201017, que dispõe sobre o registro de produtos biológicos, o mesmo deverá ser submetido à Anvisa na forma de um dossiê de estudo clínico a ser aprovado por área específica da Agência, de acordo com requisitos definidos pela RDC 09/201518, que trata dos ensaios clínicos com medicamentos e produtos biológicos;

b) Se a utilização pretendida envolver o uso do plasma convalescente como hemocomponente não cabe a submissão de estudo clínico para apreciação e aprovação prévia da Anvisa;

c) Na hipótese prevista na alínea "b", o procedimento deverá ter sua eficácia aprovada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), pelo Ministério da Saúde ou deverá ser utilizado em caráter experimental, mediante adesão às normas previstas para a realização de pesquisa em seres humanos no Brasil, ou ainda, em situações especiais - considerando a emergência de saúde pública, a gravidade da doença e a condição de risco iminente a vida do paciente, a decisão por utilizar o plasma convalescente para Covid-19, sob responsabilidade do profissional médico, com esclarecimento aos pacientes do caráter experimental e dos riscos envolvidos, mediante consentimento do paciente ou seus familiares, em conformidade com as regras de produção e qualidade aplicados em serviços de hemoterapia, aos serviços assistenciais de saúde e os requisitos para segurança do paciente19,20.

d) Na situação prevista na alínea "b" devem ser seguidos todos os requisitos constantes na RDC Nº 34/20148 e na Portaria de Consolidação Nº 512, de 28 de setembro de 2017, Anexo IV, bem como em definições especificas e atualizadas da Anvisa e Ministério da Saúde aplicáveis.

e) Orientações técnicas específicas para aos serviços de hemoterapia neste caso do plasma convalescente para COVID-19 serão definidas em Nota Técnica conjunta da Anvisa e do Ministério da Saúde.

A Anvisa reforça, sem prejuízo ao objetivo primeiro que é o combate à Covid-19 e a recuperação dos pacientes, a importância de que estes procedimentos com plasma convalescente para Covid-19 sejam realizados, sempre que possível, sob processos de ensaios clínicos (intervencionais ou observacionais), devidamente controlados, de maneira que o Brasil possa contribuir para os dados que busquem a comprovação científica deste produto.

4. Referências

1. Long Chen, Jing Xiong, Lei Bao, Yuan Shi. Convalescent plasma as a potential therapy for Covid-19. COMMENT| VOLUME 20, ISSUE 4, P398-400, APRIL 01, 2020. Acesso 01/04/2020 (online) https://www.thelancet.com/ journals/laninf/article/PIIS1473-3099(20)30141-9/fulltext

2. Casadevall A, Pirofski L. The convalescent sera option for containing Covid-19. J Clin Invest. 2020; 130(4):1545-1548. Acesso 01/04/2020 (online) https://doi.org/10.1172/JCI138003.

3. Maxmen, A. How blood from coronavirus survivors might save lives. A Nature Research Journal (Nature), March, 2020. Acesso em 01 de abril de 2020 (online) https://www.nature.com/articles/d41586-020-00895-8

4. Wu Z, McGoogan JM. Characteristics of and Important Lessons From the Coronavirus Disease 2019 (Covid-19) Outbreak in China: Summary of a Report of 72314 Cases. Chinese Center for Disease Control and Prevention. JAMA. Acesso 02 de abril de 2020 (online). https://jamanetwork.com/ journals/ jama/fullarticle/2762l30

5. Shen C et al. Treatment of 5 Critically I11 Patients With Covid-19 With Convalescent Plasma. Preliminary Communication. March 27, 2020. JAMA. Acesso em 02/04/2020 (online) https://jamanetwork.com/journals/ jama/fullarticle/2763983

6. US. Food and Drugs Administration (FDA). Autorização Emergencial de Novo Produto Investigacional (Emergency Investigational New Drug - eIND) Disponível em: https://www.fda.gov/vaccines-blood-biologics/ investigational-new-drug-ind-or-device-exemption-ide-process-cber/ investigational-covid-19-convalescent-plasma-emergency-inds

7. BRASIL. Lei Nº 10.205, de 21 de março de 2001. Regulamenta o § 4º do art. 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, estabelece o ordenamento institucional indispensável à execução adequada dessas atividades, e dá outras providências. 2001.

8. BRASIL. Anvisa. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 34, de 11 de junho de 2014. Dispõe sobre as Boas Práticas no Ciclo do Sangue, 2014.

9. BRASIL. Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013. Dispõe sobre o exercício da medicina.

10. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM Nº 1.982, de 27 de fevereiro de 2012. Dispõe sobre os critérios de protocolo e avaliação para o reconhecimento de novos procedimentos e terapias médicas pelo Conselho Federal de Medicina. 2012.

11. BRASIL. CONEP. Informe aos Comitês de Ética em Pesquisa. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/images/comissoes/conep/ documentos/CARTAS/Informe_aos_CEP_-_Tramita%C3%A7%C3%A3o_de_Protocolos_ 2019-nCoV.pdf

12. Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação MS-GM nº 5, de 28 de setembro de 2017. Anexo IV - Do sangue, componentes e derivados (Origem: PRT MS/GM 158/2016). 2017.

13. BRASIL. Ministério da Saúde e Anvisa. Nota Técnica Nº 13/2020CGSH/DAET/SAES/MS. Atualização dos critérios técnicos contidos na NOTA TÉCNICA Nº 5/2020CGSH/DAET/SAES/MS para triagem clínica dos candidatos à doação de sangue relacionados ao risco de infecção pelo SARSCoV2 (vírus causador da COVID-19). 2020. Disponível em: http://portal.anvisa.gov. br/documents/2857848/5624592/SEI_MS+-+0014052636+-+Nota+T%C3%A9cnica+13.pdf/eb3aad9b-2ddb-4cl5-b979-8aec2a6e331b

14. BRASIL. Anvisa. Marco conceitual e operacional de hemovigilância: guia para a hemovigilância no Brasil. Brasília: Anvisa, 2015. Disponível em:http://porta1.anvisa.gov.br/ documents/33868/404938/ Marco+Conceitual+e+Operaciona1+de+Hemovigil%C3%A2ncia+-+Guia+para+ a+Hemovigil%C3%A2ncia+no+Brasil/495fd617-5156-447d-ad22-7211cdbab8a7

15. IHN/ISBT Haemovigilance Working Party/AABB. Transfusion- associated circulatory overload (TACO). Definition (2018). Disponível em: http://www.isbtweb.org/fileadmin/user_upload/TACO_2018_definition_March_2019.pdf

16. ROUBINIAN, N. TACO and TRALI: biology, risk factors, and prevention strategies. Hematology 2018.

17. BRASIL. Anvisa. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC Nº 55, de 16 dezembro de 2010. Dispõe sobre o registro de produtos biológicos novos e produtos biológicos e dá outras providências. 2010.

18. BRASIL. Anvisa. Resolução da Diretoria Colegiada - RDC Nº 9, de 20 de fevereiro de 2015. Dispõe sobre o Regulamento para a realização de ensaios clínicos com medicamentos no Brasil. 2015.

19. BRASIL. Anvisa. Resolução de Diretoria Colegiada - RDC no 63, de 15 de março de 2011. Dispõe sobre os Requisitos de Boas Práticas de Funcionamento para os Serviços de Saúde.

20. BRASIL. Anvisa. Resolução de Diretoria Colegiada - RDC nº 36, de 25 de julho de 2013. Institui ações para a segurança do paciente em serviços de saúde e dá outras providências.

Documento assinado eletronicamente por Christiane da Silva Costa, Especialista em Regulação e Vigilância Sanitária, em 03/04/2020, às 16:32, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ _Ato2015-2018/2015/Decreto/D8539.htm.

Documento assinado eletronicamente por João Batista da Silva Júnior, Gerente de Sangue, Tecidos, Células e Órgãos, em 03/04/2020, às 16:35, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015 http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8539.htm.

Documento assinado eletronicamente por Ana Paula Coelho Penna Teixeira, Gerente de Hemo e Biovigilância e Vigilância Pós-Uso de Alim.,Cosm. e Prod. Sanenantes Substituto(a), em 03/04/2020, às 16:57, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015 http://www. planalto.gov.br/ ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8539.htm.

Documento assinado eletronicamente por Cejana Brasil Cirilo Passos, Gerente-Geral de Monitoramento de Produtos sujeitos à Vigilância Sanitária Substituto(a), em 03/04/2020, às 17:11, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8539.htm.

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