Diploma Legal: Nota Técnica N° S/N
Data de emissão: 28/03/2020
Data de publicação: 28/03/2020
Fonte: Diário Oficial da União
Órgão Emissor: MPT - MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
Nota da Equipe Legnet
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO (MPT), no exercício das suas atribuições estatuídas no art. 127 da Constituição da República de 1988 e nos arts. 5º, III, “e”, 6º, XX, 83, V, e 84, caput, da Lei Complementar nº 75/93, expede a presente Nota Técnica sobre a Medida Provisória nº 927/2020.
Objeto desta Nota Técnica: Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, que “dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências”.
1) Introdução
A MP 927/2020 altera a legislação trabalhista durante o período da calamidade pública, em razão da pandemia do coronavírus, reconhecida até 31 de dezembro de 2020, pelo Decreto Legislativo nº 6/2020. Compreende-se a necessidade de se propor medidas para enfrentar esse momento excepcional, preservando empregos, rendas e empresas. Sempre com o escopo de contribuir para o debate e para o aperfeiçoamento da norma e medidas propostas, o Ministério Público do Trabalho se junta aos esforços de todos entes e registra que identificou equívocos jurídicos em alguns de seus dispositivos, que podem vir a prejudicar o adequado enfrentamento da atual crise vivenciada, tanto no aspecto normativo, quanto no aspecto consequencial.
Inicialmente, cabe destacar que a Convenção nº 144 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, prestigia consulta tripartite entre representantes do governo, empregadores e trabalhadores (art. 2º, item 1 c/c art. 5º, item 1, “b”) em caso de edição de normas sobre assuntos relacionados com as atividades da OIT, hipótese da MP 927/2020. Assim, o diálogo social, ainda que de modo célere e desburocratizado, poderá se constituir em instrumento importante para se alcançar os objetivos da norma.
2) Dos limites jurídicos do acordo individual escrito (art. 2º)
O art. 2º da MP 927/2020 prevê que “durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição”.
Autoriza-se, assim, que o acordo escrito entre empregado e empregador se sobreponha às convenções e acordos coletivos e até mesmo à lei, ressalvados apenas os limites constitucionais.
O Ministério Público do Trabalho tem total sensibilidade com a situação gravíssima por que passa o Brasil - e boa parte do mundo - diante da pandemia de COVID-19. Contudo, entende que mesmo esse quadro excepcional não pode autorizar a inversão do ordenamento jurídico para que as negociações entre trabalhador e empregador estejam acima de normas coletivas e da própria lei.
No plano jurídico, é importante frisar que o art. 7º, caput, da Constituição Federal, ao elencar os direitos fundamentais de trabalhadores urbanos e rurais, admite a previsão de outros direitos por meio de leis, tratados e atos infralegais, desde que “visem à melhoria de sua condição social”. Como consequência, acordos coletivos ou individuais apenas podem prevalecer sobre as leis quando mais benéficos do que estas e não violem disposições de ordem pública, a exemplo das relativas à saúde e segurança no trabalho.
Observa-se que o patamar atribuído ao trabalho humano pela ordem constitucional é tão elevado, que ela erigiu o “valor social do trabalho” a fundamento da República Federativa do Brasil, a “valorização do trabalho humano” a uma das bases da Ordem Econômica (art. 170, caput) e o “primado do trabalho” a base da Ordem Social (art. 193). Além disso, consagrou os princípios da “justiça social” (arts. 173 e 193) e da “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, II).
A Constituição também prevê os direitos fundamentais à “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo” (art. 7º, VI) – não admitindo acordos individuais para esse fim –, ao “reconhecimento dos acordos e convenções coletivas de trabalho” (art. 7º, XXVI) e à sindicalização (art. 8º).
Lei ou medida provisória, por conseguinte, não podem autorizar supressão de convenções ou acordos coletivos mediante ajustes individuais entre patrões e empregados, sob pena de inconstitucionalidade.
3) Da segurança e saúde no trabalho (arts. 3º, VI, e 17)
Há equívoco na permissão genérica concedida pelo art. 3º, VI, da MP nº 927/2020, para suspensão, por iniciativa dos empregadores, “de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho”.
As normas regulamentadoras da saúde, segurança, higiene e conforto no ambiente de trabalho são de ordem pública, ou seja, inafastáveis pela vontade das partes, e imprescindíveis para a prevenção de doenças e acidentes, bem como para a garantia de condições minimamente dignas de trabalho. Entre os riscos por elas evitados, destacam-se, justamente, os biológicos, a exemplo de exposições ocupacionais ao coronavírus.
Em período de pandemia, por conseguinte, a observância de regras de saúde deve ser fortalecida, uma vez que o seu afastamento indiscriminado terá como poderá ter como repercussão o aumento do número de óbitos e de adoecimentos de trabalhadores, sobretudo nos serviços de saúde, que podem receber pacientes acometidos pela COVID-19.
A referida previsão da medida provisória, se mantida, pode violar direitos fundamentais consagrados na Constituição da República, dentre os quais os direitos à vida, segurança, saúde, função social da propriedade, bem-estar social e redução dos riscos inerentes ao trabalho, estatuídos nos seus arts. 5º, caput, III e XXII, 6º, 7º, caput e XXII, 170, 193 e 196. Ofende, igualmente, o princípio da prevenção, consignado nos arts. 225 e 200, VIII, da Constituição, os quais preveem a responsabilidade de todos, inclusive do Poder Público, quanto à garantia de um meio ambiente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, nele compreendido o meio ambiente do trabalho.
O dever de manutenção do meio ambiente laborativo seguro e saudável, com condições justas e favoráveis de trabalho, decorre também da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (arts. III e XXIII), assim como de grande quantidade de tratados internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro, a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, de 1966 (arts. 7°, caput e “b”, e 12, 2, “b”), do Protocolo de San Salvador (art. 7, “e”) e da Convenção nº 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual versa sobre “segurança e saúde dos trabalhadores”.
O art. 3º, VI, da MP 927/2020, nesse sentido, padece de inconstitucionalidade. Em última análise, deve ter sua aplicabilidade restrita às medidas expressamente indicadas nos arts. 15 a 17 da MP, não se admitindo a suspensão generalizada de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho.
Quanto ao mencionado art. 17, especificamente, este dispõe que “as comissões internas de prevenção de acidentes poderão ser mantidas até o encerramento do estado de calamidade pública e os processos eleitorais em curso poderão ser suspensos”. Nesse caso, deve ser conferida interpretação restritiva, pois a manutenção da própria Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) - que tem papel central na orientação, fiscalização e cobrança de medidas protetivas contra doenças e acidentes no meio ambiente de trabalho e está prevista na Constituição da República (art. 10, II, “a”, do ADCT) – não pode ser tida como uma faculdade do empregador. Deve-se entender que o dispositivo faculta a ele somente a postergação de eleições da CIPA e, assim, a permanência dos seus membros atuais por período posterior à duração dos mandatos, até que o processo eleitoral venha a ser retomado, mantendo-se a obrigatoriedade da comissão.
4) Do teletrabalho (art. 4º, caput e § 5º)
O caput do art. 4º estabelece a possibilidade de o empregador alterar o regime de trabalho da modalidade presencial para a de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho à distância, mas também possibilita que ele convoque o trabalhador a retornar às atividades presenciais sem qualquer formalidade ou garantia quanto à cessação do risco que motivou o afastamento do labor presencial.
Recomenda-se, entretanto, que se esclareça, no caput do art. 4º, que a convocação para retorno às atividades presenciais deve ser condicionada à cessação das medidas de contenção previstas em leis ou decretos das autoridades sanitárias, ou, caso se trate de atividade essencial, na hipótese de ser imprescindível a prestação do trabalho de forma presencial.
Além disso, o § 5º do art. 4º, ao prever que “o tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou coletivo”, incorre em risco de tolerância de jornadas de trabalho com duração muito superior aos limites constitucionais.
Veja-se que, ao dispor, genericamente, que o uso de aplicativos e programas de comunicação não configura jornada ou tempo à disposição, não se está garantindo devidamente o direito ao repouso do trabalhador. Evidente que, na modalidade de teletrabalho ou trabalho à distância, o controle realizado pelo empregador se dá também por meio de aplicativos de mensagens, como Whatsapp, Telegram, Skype, e-mail, dentre outros. O empregado, ao receber as mensagens, permanece alerta, à disposição para responder, realizar a tarefa solicitada e prestar contas do andamento das atividades, havendo que se respeitar a duração do trabalho disposta no art. 7º, XIII, Constituição da República.
5) Do limite à antecipação das férias (art. 6º, § 2º)
O art. 6º, § 2º, da MP 927/2020, prevê que “empregado e empregador poderão negociar a antecipação de períodos futuros de férias, mediante acordo individual escrito”. Não estabelece, porém, nenhum limite para essa antecipação.
A Constituição Federal estabelece, como direito fundamental dos trabalhadores, o “gozo de férias anuais remuneradas” (art. 7º, XVII). Os fundamentos que norteiam tal direito têm base biofisiológica, pois as férias visam a resguardar a energia física e mental do trabalhador, econômica, já que o empregado descansado tem melhores condições de produzir mais, com melhor eficiência e qualidade, e social, visto que possibilitam o estreitamento de vínculos familiares e comunitários.
É certo que o período de gozo de férias é aquele melhor atenda aos interesses do empregador e que a gravidade da situação vivenciada no país exige a adoção de medidas excepcionais. A antecipação das férias para possibilitar que o trabalhador obedeça às determinações sanitárias de isolamento social e confinamento residencial é uma opção viável para respeito às medidas de contingenciamento com manutenção dos vínculos de emprego.
Não é razoável, porém, a ausência de qualquer limitação à possibilidade de antecipação de férias de períodos futuros mediante acordo individual escrito, conforme §2º do art. 6º da MP, já que a periodicidade anual está intrinsicamente ligada a esse direito, permitindo que cumpra suas finalidades. Desse modo, entende-se, com base em juízo de proporcionalidade, que deve ser admissível a antecipação de férias, considerando-se o reconhecimento do estado de calamidade pública até 31 de dezembro de 2020, mas com limites que também preservem a necessidade de gozo anual de férias para os períodos futuros.
6) Dos limites para jornadas de profissionais de saúde (art. 26)
O Ministério Público do Trabalho entende que vivemos um momento excepcional decorrente da pandemia e reconhece a necessidade de maior atuação e intervenção dos profissionais de saúde.
Todavia, por força do 7º, XIII, da Constituição da República, e, principalmente, em razão de risco de adoecimentos, acidentes e mortes por exaustão desses profissionais, assim como do risco de erros, com danos aos pacientes, entende importante observar os limites legais de duração das jornadas de trabalho e do gozo dos intervalos para descanso em favor dos profissionais de saúde, eis que o elastecimento das jornadas, mediante prorrogação (I) e escalas de horas suplementares (II), na forma da MP 927/2020, ensejará situações de graves prejuízos aos profissionais da saúde submetidos a jornadas extenuantes de trabalho, mas também à prestação dos serviços de saúde à coletividade, cuja qualidade é imprescindível para a contenção da pandemia.
7) Do afastamento da configuração da COVID-19 como doença ocupacional (art. 29)
No seu art. 29, a MP nº 927/2020, estipula que “os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”. Essa redução pode prejudicar principalmente profissionais da saúde, já que teriam o ônus de comprovar a origem exata da fonte de contaminação pelo coronavírus, mesmo que estejam diariamente expostos a esse risco em seu ambiente de trabalho.
Cumpre destacar que o art. 169 da CLT determina a emissão da comunicação de acidente do trabalho (CAT) mesmo em caso de suspeita de relação causal entre a doença e o trabalho, justamente porque há hipóteses em que o risco está fortemente presente na atividade. A MP afasta essa previsão da CLT.
Ademais, a não emissão de CAT em caso de suspeita de nexo entre o trabalho e adoecimentos gera subnotificação e prejudica estatísticas e o monitoramento das doenças no ambiente laborativo e, consequentemente, dificulta o planejamento de medidas preventivas de contaminações, violando os arts. 5º, caput, III e XXII, 6º, 7º, caput e XXII, 170, 193, 196, 200, VIII, e 225 da Constituição.
Em caso de manutenção integral das regras definidas pelos arts. 29 e 26 (comentado acima), poder-se-ia, indiretamente, desestimular atendimentos médicos e prejudicar a prestação de serviços de saúde durante os períodos de quarentena ou isolamento.
8) Da p rorrogação de normas coletivas a critério do empregador (art. 30)
O art. 30 da MP 927/2020 dispõe que normas coletivas podem ser prorrogadas a critério exclusivo do empregador.
As relações coletivas de trabalho têm como principais atores os sindicatos de trabalhadores e as empresas e suas representações sindicais, que personificam interesses setoriais da economia e das categorias profissionais, instrumentalizados, essencialmente, nas convenções e acordos coletivos de trabalho. Por essa razão, a
Constituição da República não apenas assegurou, como direito fundamental, o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho (art. 7º, XXVI), mas também estabeleceu a obrigatoriedade da participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho (art. 8º, VI).
Em meio à pandemia, o fomento à negociação coletiva como instrumento para garantia de emprego e mitigação da transmissão do novo coronavírus não pode ser descartado para fins de atingimento de soluções criativas para problemas econômicos e sanitários setoriais.
A redação do art. 30, desestimula a negociação coletiva, facultando aos empregadores, unilateralmente, a prorrogação da vigência de normas coletivas potencialmente anacrônicas, bem como viola o comando constitucional que determina a obrigatoriedade da participação dos sindicatos nas negociações coletivas e seus instrumentos normativos resultantes, motivo pelo qual tal dispositivo deve ser suprimido ou modificado para se adequar ao ordenamento jurídico.
9) Da restrição à atuação da fiscalização federal trabalhista (art. 31)
O art. 31 da MP 927/2020 restringe a atuação da fiscalização federal trabalhista em temas essenciais nesse contexto da pandemia. Nos seus termos, por 180 dias contados da data de entrada em vigor da MP 927/2020, os auditores-fiscais do Trabalho não poderão impor multas para a grande maioria de infrações trabalhistas detectadas, devendo agir, como regra, de maneira orientativa, salvo quanto aos aspectos da falta de registro de empregados (e, ainda assim, somente a partir de denúncias), situações de grave e iminente risco, acidentes de trabalho fatais (e não, por exemplo, acidente de trabalho graves, que ensejem mutilações, amputações ou internamento hospitalar) e para ocorrências de trabalho escravo contemporâneo ou de trabalho infantil.
Observa-se, assim, que a disposição do art. 31 da MP 927/2020 pode colidir com a ordem constitucional pela supressão de competências essenciais da atividade de fiscalização trabalhista nesse momento, tais como situações agravadas pelo estado de calamidade pública, especialmente em atividades essenciais à contenção da epidemia e que demandarão fiscalização com autuação e adoção de medidas cautelares, para garantir, por exemplo, a adoção de medidas de controle de riscos ocupacionais, o uso efetivo dos equipamentos de proteção individual, e a inibição da prática de jornadas de trabalho extenuantes.
10) Conclusão
Por todo o exposto, o Ministério Público do Trabalho entende que a norma em comento pode ser aperfeiçoada e, para tanto, oferece os presentes argumentos jurídicos e fáticos que alicerçam o seu posicionamento, sem prejuízo de nova manifestação em relação aos demais dispositivos da Medida Provisória 927/2020.
Brasília, 28 de março de 2020.
ALBERTO BASTOS BALAZEIRO
Procurador-Geral do Trabalho
MÁRCIO AMAZONAS CABRAL DE ANDRADE
Secretário de Relações Institucionais
TADEU HENRIQUE LOPES DA CUNHA
Coordenador Nacional
Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho
ANA LUCIA STUMPF GONZALEZ
Vice Coordenadora Nacional
Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho
CAROLINA DE PRÁ CAMPOREZ BUARQUE
Vice-Coordenadora Nacional
Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho
ITALVAR FILIPE DE PAIVA MEDINA
Vice-Coordenador Nacional
Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo
LUCIANA MARQUES COUTINHO
Vice Coordenadora Nacional
Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente
LUCIANO LIMA LEIVAS
Vice-Coordenador Nacional
Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente de Trabalho